Hoje completa 18 anos de existência do Grupo Mamulengo Sem Fronteiras, são anos de muita luta, vitorias,alegria tristeza e muito amor, Gostaríamos de agradecer a todas e todos que de alguma forma contribuíram e contribuiu para o nosso crescimento, sabemos que hoje é um dia especial para todos os amigos, amigas, parceiros e parceiras Sem fronteiras, muitos beijos abraços e Vida loga ao Mamulengo Sem Fronteiras.
quinta-feira, 10 de julho de 2014
segunda-feira, 7 de julho de 2014
Mamulengo: o Teatro de Bonecos Popular no Brasil
Mamulengo: o Teatro de Bonecos Popular no Brasil
por Fernando Augusto Gonçalves Santos
Grupo Mamulengo Só-Riso [PE]
Grupo Mamulengo Só-Riso [PE]
Fonte: Blog Formas animadas
http://formasanimadas.wordpress.com/
.
Praticado como é em todo mundo, o teatro de bonecos assumiu fisionomias e espírito dramático diferenciados, dependendo da localização geográfica de cada uma de suas manifestações. Isso devido, obviamente, às próprias injunções de tradição cultural, costumes, formação social, econômica e política.
Existe em alguns estados do Nordeste do Brasil uma forma de teatro de bonecos praticada por artistas do povo, que se denomina Mamulengo. É o Mamulengo um teatro de características inteiramente populares, onde os atores são bonecos que falam, dançam, brigam e quase sempre, morrem.
Como em tantas outras manifestações artísticas da cultura popular nordestina, o Mamulengo revela de modo singular a rica expressividade do dia-a-dia do povo da região. Através dos bonecos, o povo se identifica com suas alegrias e suas tristezas, com seus temores e sua capacidade de fé, com seus tipos matreiros e seus elementos repressores, com o esmagamento de seus direitos e sua ânsia de liberdade.
O Mamulengo tem, realmente, um extraordinário poder de sintetização e revelação estética dos anseios mais ardentes do povo nordestino, não obstante a precariedade de seus recursos disponíveis, quer técnicos, quer mesmo estéticos ou de escolaridade.
Guardando elementos vinculados à tradição dos folguedos ibéricos e sendo remanescentes dos espetáculos da Commedia dell´Arte, o Mamulengo baseia-se na improvisação livre do ator (mamulengueiro). Conquanto tenha um roteiro básico para a história, que não é escrita, os diálogos são criados no momento mesmo do espetáculo, de acordo com as circunstâncias e com a forma de reação do público.
Não podendo existir sem a música e sem a dança, o Mamulengo exige do público uma participação constante e ativa, que permita completar, o que os bonecos muitas vezes irão apenas sugerir. Requer-se, portanto, uma imensa interação boneco/platéia, que
não se torna difícil por conta do incrível poder de improvisação e capacidade imaginativa que tipifica os mamulengueiros. Por isso, sendo um teatro do improviso, do repente, depende visceralmente do público assistente que alimenta, ignora ou castra a vertente de criação que sai do mestre, passa para o boneco e atinge o público.
Ao reagir, a assistência oferece a inspiração necessária ao processo de criação improvisada, de que se constitui o espetáculo, formando um ciclo contínuo que envolve a todos, titireteiro, títeres e público. O espetáculo do Mamulengo, que seja urbano ou rural, é destinado a um público específico. O Mamulengo não satisfaz as necessidades teatrais ou mesmo emocionais do público intelectual e burguês que habitualmente freqüenta nossos teatros. Quando muito, esse público assiste a uma função por curiosidade, por atitude exótica ou por seu aspecto folclórico. Fica bastante claro que seu público é o povo, as camadas mais inferiores da sociedade, a gentalha, a rafaméia, o Zé-povinho.
A esse povo o mamulengueiro sabe falar, dizendo dos mais diferentes aspectos de suas vidas, transfigurando suas alegrias e dores. Freqüentemente, o Mamulengo é de uma contundência admirável, motivado por uma inspiração fascinante que lhe permite alterar o equilíbrio do mundo, as relações de poder, insurgindo-se contra o maniqueísmo da vida, criando um outro mundo que ele próprio governa, uma situação poético-dramática que incorpora o público. Arranca personagens e temas de um mundo ao qual é sujeito, submisso e pelo qual é explorado, transpondo-os, em transfiguração muito própria, para um mundo onde sua voz, anseios e vontades são ouvidos. Isso tudo na intenção maior de provocar o riso, que gerando a folgança, o alívio, o divertimento, atua como elemento catártico e de grande comunicabilidade.
O Mamulengo é um fenômeno vivo, dinâmico, em constante processo de mutação, de transformação. Sendo de natureza dramática enquanto folguedo, possui possibilidades consideravelmente mais amplas de incorporar os fatos culturais do cotidiano, e de absorver inclusive, outros folguedos através do seu processo de representação centrado na teatralização do mundo que o cerca, levando à cena os “brinquedos”, as contradições, costumes e tradições da comunidade onde subsiste.
Nas zonas rurais do Estado de Pernambuco, onde existe atualmente a maior concentração do folguedo, podemos constatar, afirmando com segurança, que o Mamulengo encontra seu público natural nos sítios. O que corresponde a sítios são pequenas lavouras ou roças, afastadas das sedes dos municípios ordinariamente arrendadas aos moradores de um engenho de açúcar ou de grandes fazendas, mediante prestação de serviços ou percentagem na produção agrícola. Produzem, sobretudo uma agricultura de subsistência, compreendendo o plantio de mandioca, feijão, milho, macaxeira, por vezes fumo e algodão.
É um público composto de pequenos agricultores, camponeses, de minguada renda, confinados em serras, vales e ribeiras, distantes ainda do impacto brutal da civilização dos mass-media. A produção diversional é local, feita e brincada pelas próprias pessoas, que nela se colocam como participantes ativos e das quais se exige a inventividade e o espírito de folgazão. O consumo da diversão enlatada ainda é restrito em relação ao consumo da diversão inventada, que exige execução corporal e artesanal envolvendo um espírito grupal atuante, no desejo de folgar, de rir, de galhofar, de divertir-se, brincando.
Nesses sítios é onde encontramos o Mamulengo sendo praticado no seu melhor estilo, expressando todas as suas características de folguedo teatral, quer sejam plásticas ou dramáticas. É dentro desse contexto de relações com meio geográfico e vida social, dentro de uma ecologia bastante específica que ainda se pode encontrar o espetáculo do Mamulengo acontecendo com a extraordinária duração de sete a oito horas, brincando-se a noite inteira até o raiar do dia. Aqui não se deve apenas salientar o aspecto da duração mas, sobretudo, o fato da interação completa do público com o espetáculo, num resultado teatral dos mais comoventes, carregado de força telúrica.
Luiz da Serra, nos seus quase 50 anos de brinquedo, tendo uma vastíssima experiência desse tipo de espetáculo, salienta a receptividade e acolhida que sempre teve nos sítios, onde comumente era recebido com satisfação, “o dono da casa dizendo: pode brincar sem cisma, que a justiça daqui sou eu”. Este fato serve, igualmente, para ilustrar outra característica peculiar aos espetáculos feitos nos sítios: sendo o dono da casa a justiça, os critérios de censura sobre o espetáculo são do próprio grupo, ou melhor do dono do terreiro.
Evidentemente, há uma preocupação de moralidade nos seus espetáculos, tanto por parte dos mamulengueiros como pelos donos dos terreiros, que no caso são empresários, pois contratam o brinquedo para levá-lo ao sítio. Moral geralmente muito própria à comunidade local, onde determinadas cenas, que poderiam ser normalmente consideradas obscenas, são aceitas com naturalidade e riso, enquanto outras que nos pareciam de completa ingenuidade não são aceitas, por vezes até evitadas, no intento de não criar conflitos.
Segundo Mestre Zé de Vina (mamulengueiro vivo e atuante) o povo dos sítios reclama de palavra imoral dizendo que o brinquedo fica desmoralizado; que tem família no terreiro,” o que obriga o mamulengueiro a conter sua verve e malícia, abrandando os gestos mais obscenos. Por sua vez, Antonio Biló, mamulengueiro de Pombos — Pernambuco, ressalta um outro fato que também constatamos: “por volta de onze horas, os meninos começam a sair, seguido das mulheres que saem entre meia-noite e uma hora”. Realmente, pós a meia-noite o público é predominantemente masculino, as mulheres se retirando devido ao avançado da hora.
“É quando o brinquedo esquenta. Todo mundo pega a beber, o espetáculo fica mais solto, sai mais prosa e a função fica mais livre”. Já a essa hora, sem contar com nenhum agente repressor, o espetáculo evolui atingindo elevado grau de humor, de malícia e sensualidade, o improviso correndo solto, com o público já um tanto embriagado, soltando o riso e respondendo os gracejos dos bonecos, atiçando a verve do mamulengueiro que, descontraído, libera toda a sua expressão.
“Só pode brincar mamulengo se for poeta. Se não for poeta não pode brincar”. Mestre Luiz da Serra – Mamulengueiro de Vitória de Santo Antão (PE).
Dos mais antigos mamulengos até os atuais da área rural, pode-se observar uma estrutura de funcionamento definida e uma hierarquia de papéis e funções, quase sempre rígida e respeitada. Evidentemente coexistem estruturas diferentes, o que é notório na área urbana a ponto de se ter difundido a idéia de que o mamulengo é brincado apenas pelo mamulengueiro com um ajudante. De fato a grande maioria dos mamulengos urbanos que encontramos brincam desta forma. O mamulengueiro abarcando as funções de autor, ator-manipulador, cantor e empresário, prescindindo de uma equipe, usando apenas um ou no máximo dois ajudantes que auxiliam nos bonecos ou tocam o bombo fazendo acompanhamento para as danças.
Entretanto, há um consenso geral entre os mamulengueiros,principalmente entre os rurais, acerca da estrutura tradicional de funcionamento que como salientamos ainda subsiste na totalidade dos mamulengos dirigidos pelos antigos mestres do brinquedo. O que vem a ser essa estrutura? De que elementos se compõe e quais as suas funções dentro do espetáculo?
Dentro da barraca (palco) o Mestre: É o responsável pelo brinquedo, a figura mais importante, geralmente sendo o dono dos bonecos e criador do espetáculo.
Ordinariamente acumula as funções de empresário, principal ator e manipulador. O contramestre: É a segunda pessoa do brinquedo, só em alguns casos sobrepujado em importância pela figura do Mateus. Manipula os bonecos, cria mais de uma voz, dialoga com o mestre sustentando o improviso.
Os folgazões:
Tradicionalmente são dois e também são denominados de “os ajudantes”. Brincam dentro da barraca e quase nunca falam. Têm como função a manipulação de bonecos em cenas de muitos personagens, como brigas, e, sobretudo danças, quando cantam
Tradicionalmente são dois e também são denominados de “os ajudantes”. Brincam dentro da barraca e quase nunca falam. Têm como função a manipulação de bonecos em cenas de muitos personagens, como brigas, e, sobretudo danças, quando cantam
fazendo coro junto com os instrumentistas. No lado de fora da barraca o Mateus: Personagem assimilado do Bumba-meu-boi, encontrado em quase todas as formas de teatro de bonecos popular. Sua função principal é de ser intermediário entre o mundo configurado dos bonecos e o mundo real do público. Responde aos bonecos, diz loas ou complementa a última estrofe dos versos. Deve ter senso e prática de improvisação.
Os instrumentistas:
O espetáculo do Mamulengo tem sua estruturação dramática repousando no constante apoio musical dos instrumentistas, verificando-se sua participação, nas cenas de danças, nas cantorias, nas brigas, determinando muitas vezes o ritmo e o clima espetáculo. À altura da qualificação dos instrumentistas o espetáculo cresce em participação, sendo a música executada ao vivo, muitas vezes criada de improviso em cima da cena que está sendo apresentada.
Entre os mamulengueiros recebem a denominação de “instrumenteiros”, “batuqueiros” ou “tocadores”. A partir dos instrumentos de uso mais constante (fole de oito baixos, triângulo, ganzá e zabumba) são denominados os instrumenteiros. Assim temos:
“O Tocador”: instrumenteiro que toca o “fole de oito baixos” (acordeon) principal instrumento do conjunto.
“O Triangueiro”: tocador de triângulo.
“O Ganzazeiro”: que toca o “ganzá” (pequeno tubo de flandre com seixos ou sementes no interior).
“O Bombeiro”: tocador de zabumba (bombo).
Quanto a duração os espetáculos variam de um mínimo de duas horas até seis, sete ou oito horas de representação contínua, o mestre revezando-se com o contra-mestre, os instrumenteiros tomando bicada entre um intervalo e outro das cantorias, todos brincando a noite inteira, artistas e público.
Os tipos de palco usados recebem denominações e configurações diversas, sendo comumente chamados de “barraca”, “torda”, “impanada” e em menor freqüência “tenda”. Em geral são revestidos com tecido, sendo a armação feita de barrotes de madeira que, fixados por parafusos ou encaixes, possibilitam a desmontagem da barraca em pouco tempo. É o tipo mais simples de palco, embora encontremos mamulengueiros de subúrbios do Recife brincando, às vezes, com uma simples corda esticada, sobre a qual se coloca um pano qualquer, esse arranjo sendo também denominado “impanada” ou “barraca”.
Na área rural, as barracas de uso mais generalizado têm cerca de um metro e cinqüenta centímetros de largura, por dois metros e meio de altura, a profundidade não indo além de um metro meio. É de uso comum a utilização de um chitão colorido de grande estamparia recobrindo toda a parte frontal. Também existe mamulengueiro que faz uso de folhas de flandre (60 x 40 cm), feitas de lata de querosene, sobre as quais são pintados, de modo figurativo, os personagens mais importantes do espetáculo ou mesmo pequenas cenas. Essas placas são colocadas no interior da barraca, correspondendo aos bastidores ou tapadeiras de um palco convencional de atores. Servem para delimitar o espaço dentro da tenda, por onde circulam os bonecos, que geralmente aparecem e desaparecem por trás dessas placas.
Exercem igualmente uma função de “distanciamento”, conferindo ao espaço cênico, ao delimitá-lo, a oportunidade de uma nova transfiguração dos bonecos/personagens, através da pintura. Assim se fundem no espetáculo o boneco tridimensional, animado e o boneco chapado, inanimado, de uma só dimensão.
A função da música no espetáculo é de apoio, dando-lhe não só um colorido rico de intenção, mas também agindo como elemento de ligação entre as cenas, contendo um sabor de narração crítica ao comentar a ação. Atua ainda como um forte elemento jocoso e como suporte ou pano de fundo para as cenas de briga ou de pura dança, tendo igualmente extrema funcionalidade ao servir de recurso para os personagens, sobretudo os narradores identificarem-se perante o público através da cantoria de loas que lhe são próprias.
A estruturação dramática no Mamulengo obedece a um sistema de pequenas peças ou passagens não escritas, entremeadas por números de danças e improvisações feitas pelo apresentador — o Simão, o Tiridá, o João Redondo, etc. Na realidade as passagens
(cenas) se constituem em motivos ou pretextos para dar lugar a determinado personagem atuar. É um espetáculo de estruturação arbitrária, as passagens acontecendo de modo independente, sem qualquer preocupação de ligação lógica entre si. De uma maneira geral, o espetáculo acontece englobando vários tipos de passagens.
Podemos citar algumas delas: Passagens-Pretexto: em que tudo se resume ao boneco que aparece, diz alguns gracejos, cumprimenta o público, canta uma loa e sai. A intenção visível não é narrar, nem interpretar um personagem qualquer numa situação determinada. É simplesmente, o boneco que, por sua força, se impõe na cena, independentemente de um sentido lógico para suaaparição.
Passagens-Narrativas: que, de modo versejado e à maneira dos metas repentistas, um ou dois bonecos narram fatos, acontecimentos ou histórias imaginárias. P
assagens-de-Briga: de constituição amplamente arbitrária, onde aos bonecos são permitidos, e só a eles sendo possíveis variados jogos de movimentação guerreira e onde são submetidos a verdadeiras provas de resistência artesanal dado ao grande número das pancadarias e violentas contorções que são típicas dessas passagens. Estas são, talvez, as de incidência mais numerosa nos espetáculos de Mamulengo.
Passagens-de-Dança: servem primordialmente como recurso dos mais utilizados, e por vezes até de uso abusivo, para ligação entre as diversas passagens que compõem o espetáculo. Nelas têm participação ativa os instrumenteiros e os bonecos-dançarinos.
Passagens-de-Peças ou Tramas: São as que, do ponto de vista da estruturação formal do espetáculo de teatro, podemos considerar como pequenas peças, às vezes aproximando-se de comédias, outras vezes de moralidades e farsas, ou ainda de autos religiosos e sátiras sociais.
Os espetáculos de Mamulengo, embora constituindo-se de peças ou passagens não escritas, que se aproximam de diversos gêneros dramáticos, podem ser consideradas, globalmente, como forma teatral mais vinculadas ao gênero revista, ao teatro de variedades, onde uma sucessão de passagens com assuntos cômicos, sociais, morais, religiosos, etc., se sucedem como sketches, incorporando elementos que pertencem ao gênero dos musicais e ao gênero do circo.
O criador do brinquedo é sempre um artista popular, homem do povo, que representa com seus bonecos o homem do povo e para esse mesmo homem. É também um artista do riso. É o riso sua grande preocupação e intenção, sua satisfação mai or, sua recompensa como artista. Quase sempre são analfabetos, maioria nunca tendo freqüentado qualquer tipo de escola que não seja a da própria vida.
Na atualidade entre os mamulengueiros mais importantes — aqueles que são considerados mestres no consenso geral do público e dos aprendizes — destaca-se com maior relevância: Mestre Zé de Vina (Glória do Goitá /PE), Mestre Luiz da Serra (Vitória e Sto. Antão/PE), Mestre Antonino Biló (Pombos/PE), Mestre Solon (Carpina/ PE), Mestre Otílio Caruru /PE) e o Mestre Ginu falecido em 1977 e que foi sem dúvida o mais importante do Recife nas duas últimas décadas.
Os mestres são na verdade, não apenas os responsáveis mais diretos pela expressividade do Mamulengo, mas são igualmente os promotores da difusão do brinquedo. Com os mestres e sempre com eles, aprendem a brincar os novos mamulengueiros, ao menos os que conseguem atingir um nível artístico do porte daqueles que, apaixonados, enfrentam todas as adversidades e não permitem que o brinquedo desapareça tragado pelas modernas formas de diversão.
Como forma dramática específica do teatro de bonecos popular, o Mamulengo sendo ao mesmo tempo um folguedo, um brinquedo, um invento folclórico, exerce influência sobre os demais folguedos, sendo sobretudo por eles influenciado. No nosso caso temos o Mamulengo, um fato folclórico, um folguedo e, sobretudo um teatro. Sim, o Mamulengo como urna forma de teatro popular de bonecos. A nosso ver ultrapassando os limites da simples manifestação folclórica, constituindo-se em manifestação teatral popular especial especialíssima, por suas características, meios e modos de trabalhos e sobremaneira pelo seu caráter dramático, que lhe faz representar, reinventar e mesmo transfigurar a cultura, a coletividade e o mundo, que lhes são próprios e nos quais sobrevive.
Dessa forma o Mamulengo atua como fator de aglutinação de outros brinquedos, incorporando-os, configurando-os em bonecos que se expressam de maneira e forma teatral. Nesse sentido realiza um curiosíssimo sincretismo dos folguedos que coexistem na sua área de sobrevivência.
Por vezes esse sincretismo se constata através de um ou outro elemento assimilado de outro folguedo, como é o caso da figura do “Mateus”, tomado de empréstimo ao “Bumba-meu-boi”. Mas ocorrem geralmente assimilações globais de folguedos, num sincretismo intenso, que se expressa não no sentido de meramente copiar ou reproduzir o folguedo assimilado, e sim, dando-lhe o tratamento, o feitio e a linguagem teatral próprios no Mamulengo.
Na sua fase atual, o Mamulengo incorporou de maneira integral ou parcial ao seu espetáculo o Bumba, o P astoril, a Ciranda, os Caboclinhos, elementos do Maracatu e dos Circos Mambembes do Nordeste, os denominados “tomara-que-não-chova”.
Esses bonecos são meus amigos das horas tristes. São meus companheiros. Eu não quero ver ninguém dar uma queda neles. Para mim é meu filho. Cada um tem um jeito de vida, cada um uma religião. Adoro meus bonecos. Tenho mais amizade a eles do que a um filho.
O que vem a ser esses objetos que de repente adquirem vida e são capazes de emocionar os homens? Que espírito anima homens rudes e analfabetos a estabelecerem relações profundas com os bonecos, num certo sentido místicas, a ponto de lhes emprestarem uma alma, animando e tornando vivos simples pedaços de madeira?
O certo é que os bonecos do Mamulengo — os mamulengos —, nos transportam para um mundo especial onde o fantástico se torna cotidiano. Penetrando nesse mundo e tentando compreendê-lo partamos do boneco como objeto plástico, como escultura, até o momento em que perde sua natureza de simples escultura e adquire a de ser dramático, quando se incorpora ao espetáculo como personagem animado e quem o mamulengueiro empresta alma e conseqüentemente vida.
Sabemos que a emoção que o boneco desencadeia no público tem como causa primeira o próprio boneco na sua configuração plástico-teatral. E mais: que essa configuração é resultado de um processo anterior ao espetáculo propriamente dito, que é o da criação e feitura artesanal, ou seja, o processo de transformação que vai de simples pedaços de madeira, até à forma final do boneco.
Os mamulengos, ao contrário dos bonecos fantoches e dos marionetes, não são frágeis, não possuem grande complexidade quanto ao seu funcionamento e tampouco são feitos para logo perecerem. O mamulengueiro-artesão, quando faz os bonecos, tem uma preocupação de durabilidade, um desejo poético de eternizá-lo através de material utilizado. Daí o uso constante da madeira, material tradicionalmente usado para feitura dos mamulengos.
Embora os encontremos — como exceção — feitos em outros materiais. A feitura escultural dos mamulengos compreende a cabeça e as mãos, o que não exclui os bonecos de corpo inteiro, totalmente esculpidos em madeira. Para esculpir utiliza-se prioritariamente uma madeira denominada mulungu, seguido de umburana, carrapateira e mais raramente uma raiz aquática encontrada em determinados mangues ou alagados, denominada pana.
Eventualmente encontramos também mamulengos feitos em pano, massa de papel (papier-maché) e cabaça. Mas o emprego desses materiais constitui exceção, sendo a madeira o material que caracteriza o boneco do Mamulengo.As mãos são igualmente de madeira, esculpidas com técnicas diferentes, dando-lhes formatos e possibilidades de manejos variados.
Quanto a classificação dos tipos de mamulengos, podemos no geral dividí-los em dois grandes grupos: mamulengos de luva e mamulengos de vareta, sendo os primeiros predominantes. Mamulengos de luva: com cabeças e mãos esculpidas em madeira, vestidas com túnicas de pano. Para movimentá-los, introduz-se na cabeça o dedo indicador e nos braços — que ficam cobertos pela túnica — os dedos polegar e médio.
Mamulengos de luva e fio: são bonecos que sendo de luva, possuem articulações de boca, de olhos ou língua, movimentadas a partir de fios, que, passando por dentro da túnica, prolongam-se um pouco mais, permitindo que o manipulador com a mão direita movimente a cabeça e o corpo do boneco e, com a mão esquerda, acione os fios movimentando as articulações especificadas.
Mamulengos de vareta: geralmente são configurados de corpo inteiro, mostrando braços, troncos e pernas. De ordinário, têm o corpo esculpido em madeira. Possuem uma vara central, que fincada no corpo do boneco, permite sua sustentação e controle. Pode ocorrer também serem integrados de pequenas varetas que, ligando-se nos pés ou nos braços, possibilitam movimentos diversificados, a manipulação sempre acontecendo de baixo para cima.
Mamulengos de vareta e fio: é o mesmo boneco descrito acima, acrescido de fios que aparecem às vezes ligados às articulações de olhos, bocas e línguas, ou pernas e braços, oferecendo possibilidades de movimentos mais elaborados e de maior efeito.
Evidentemente existem variações ou modalidades de tipos que escapam à classificação genérica aqui proposta, sendo impossível nos limites deste artigo, analisá-los em suas peculiaridades.
Os instrumentos usados para esculturar os bonecos são simples e reduzidos. O artesão esculpe usando faca como instrumento principal, auxiliado por uma pequena serra, uma verruma, às vezes alguma grosa ou lima e lixas com as quais dá todo o polimento e tratamento final da escultura.
Os mamulengos, com escultura evidenciam a ingenuidade inerente ao primitivo, embora ultrapassam o ingênuo no que configuram, devido ao sistema de regras que orienta seus feitios, permanecendo, entretanto, como arte de base sentimental e origem religiosa. Observamos, entretanto, que o Mamulengo, na sua forma atual, praticamente perdeu o caráter religioso de suas representações, apesar de ligeiros remanescentes que comprovam hoje essa origem sacra. Ele é atualmente a nossa típica expressão de um teatro popular e total, onde “o boneco é o personagem integral e o público um elemento atuante”, no dizer de Hermilo Borba Filho.
São primitivos e figurativos, afastando-se do sentido de simples reprodução naturalista, de cópia servil da realidade, aproximando-se de uma síntese de forma. Resultam mais numa transfiguração escultural do que na simples figuração de tipos, segundo o próprio mundo impõe ao artista.
Assim a tendência habitual é a abstração ou eliminação de detalhes e peculiaridades próprios à imagem natural, aproximando-se de uma forma que procura exprimir a idéia ou a essência do que se quer figurar. Nesse sentido podemos observar uma certa esquematização no feitio das figuras humanas que não possuem, como personagens, importância significativa no espetáculo.
Ainda do ponto de vista escultural, podemos considerá-los arbitrários tanto quanto o são, quando animados no espetáculo. O próprio boneco por si só já configura uma recriação arbitrária da realidade. As proporções anatômicas são de completa liberdade formal, tendendo ao exagero de certas partes.
A matéria do homem junta-se à matéria do boneco para uma transfiguração. A alma do homem dá ao boneco também uma alma. E, nesta pureza realizam um ato poético. Hermilo Borba Filho De simples objeto escultural, sem vida, estático, o boneco, quando o mamulengueiro o leva à cena, transforma-se por completo.
É impressionante observar no interior das barracas esses mamulengueiros pobres e rudes, sem qualquer refinamento cultural ou social, assumirem uma outra vida, enquanto animam seus bonecos. Brincam com a imaginação desenfreada, ocorrendo-lhes a cada instante idéias, correlações e pensamentos que nascem e morrem enquanto dura a função. É como se assumissem uma situação de transe mediúnico, incorporando seres (os bonecos), trabalhando como se estivessem possessos ou possuídos por espíritos diferentes e de variadas categorias de acordo com o tipo e personalidade de cada boneco. Vimos vários mamulengueiros
brincarem como se estivessem “manifestados”, revelando um lado completamente inesperado de suas personalidades.
Os mamulengos no espetáculo nos transportam a todos para o reino do mito, para o terreno das lendas e das naturais aspirações dos homens pobres, que constituem seu público. Fazem-nos sobrevoar além dos limites de nossa razão, exigindo-nos a supremacia da imaginação e, sobretudo o dom da intuição, que permitem complementar o que é sugerido. Exigem também que os conheçamos, para amá-los e suprir suas deficiências, limitações ou defeitos em relação aos humanos. Daí sempre afirmarmos que brincar Mamulengo é verdadeiramente e sempre um ato de paixão.
Há na realidade um apaixonamento do mamulengueiro pelo boneco que ele cria e ao qual dá vida. Sendo o riso, como já fizemos observar anteriormente, a intenção maior do espetáculo, buscam esses artistas populares alcançar o seu objetivo, levando ao pequeno palco momentos de intensa hilaridade através da exploração, simples e natural de elementos como peidos e bufas, cólicas intestinais, cacetadas, umbigadas, o erotismo das danças e a imitação caricatural do ato sexual (a “fodelança” no dizer dos próprios mamulengueiros).
Como também, faz-se o público rir da derrota dos poderosos, sempre apresentados de forma ridícula e visível. Os espetáculos englobam também os mitos do povo, sendo justamente por isso que esse povo se sente alegre e valorizado, pois se vê em pé de igualdade com esses mitos (santos, diabos, etc.), representados no espetáculo.
Entre os personagens do Mamulengo, observamos alguns que são constantes, podendo ser encontrados em qualquer um mamulengueiro dos mais antigos aos mais novos. Isso nos permite, de um modo geral, estabelecer uma classificação dos personagens, dividindo-os em três categorias: os humanos, os animais e os fantásticos. É evidente que aqui e acolá podem ser encontrados personagens que escapam a essa classificação, tudo dependendo da fertilidade de imaginação do artista.
Como personagem-humanos os que mais se destacam em importância e freqüência, são: o apresentador (Simão, Tiridá, etc.), as Quitérias, o Capitão Manuel de Almeida, o Padre, o Sacristão, o Janeiro, o Causo-Sério, a Chica da Fubá e Pisa-Milho, os militares, os advogados, os negros de briga, os cangaceiros, entre outros.
Os personagens-animais constituem grupo de muito interesse e, embora numericamente reduzidos, possuem significativa importância no espetáculo. Os bichos nunca falam ou pelo menos nunca os vimos falar no espetáculo, como acontece nos contos populares que o povo narra. Os mais destacados são: a Cobra e o Boi. O primeiro representa a noção do Mal, da astúcia e da peçonha, com a primeira queda ou o pecado. O Boi tem um sentido quase cultual, prestando-se assim uma homenagem ao animal que mais utilidade oferece ao homem da região. Aparecem ainda o Cavalo, o Porco, o Cachorro, a Raposa, pássaros, etc.
Os personagens que consideramos fantásticos derivam da mitologia e de assombrações que povoam as narrativas populares. São basicamente, a Morte, os Diabos, as Almas e os Papa-figos e quaisquer outros bonecos criados na intenção de assombrar, de criar um clima onde o fantástico domina sobre a realidade.
Referências (Nota dos editores)
BORBA FILHO, Hermilo. Fisionomia e Espírito do Mamulengo. São Paulo: Nacional, 1966.
SANTOS,Fernando Augusto G.Mamulengo, um povo em forma de boneco. Rio de janeiro: FUNARTE, 1979.
SANTOS, Fernando Augusto G. Mamulengo: o teatro de bonecos popular no Brasil. In: Mamulengo – Revista da Associação Brasileira de Teatro de Bonecos. No. 9. Belo Horizonte: Minas Gráfica, 1980.
.
* Publicado originalmente em:
Móin – Móin: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas.
Jaraguá do Sul : SCAR/UDESC, ano 2, v. 3, 2007.
ISSN 1809 – 1385
Móin – Móin: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas.
Jaraguá do Sul : SCAR/UDESC, ano 2, v. 3, 2007.
ISSN 1809 – 1385
quinta-feira, 3 de julho de 2014
Assinar:
Postagens (Atom)