segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O mamulengueiro é um ator?

O mamulengueiro é um ator?
A PRÉ HISTÓRIA DO ATOR
Nascemos com este sentimento, somos seres essencialmente teatrais.
Nicolau Evreinof
Diferente do que a maioria dos estudiosos afirma sobre a origem religiosa do teatro vamos imaginar o contrário e falar na origem teatral das religiões ou simplesmente que na gênese de nosso ofício está a necessidade humana de simbolizar vivências ou sensações com o objetivo de comungá-las com o seu semelhante, esta habilidade de comunicação foi chamada pelo estudioso russo Nicolau Evreinof de “transfiguração” (trans+figura+ação), ou seja, demonstração de uma ação através de figura. [1]
O ser humano sempre fez teatro, é uma necessidade inerente a nossa condição. Imagine o primeiro caçador, solitário, faminto, perseguindo sua caça... caçar é uma atividade complexa que envolve riscos, o clima é de tensão e suspense, o caçador espreita, decifra pistas e sinais deixados nas folhagem das árvores, segue pegadas, aciona e aguça todos os sentidos, sente cheiros, ouve sons, coordena informações de forma lógica e organizada, faz leituras, cálculos complicados, imagina a serventia de objetos utilizados como arma, concentra-se e despreendendo toda energia disponível ataca, luta com todas as forças libera adrenalina para vencer o medo e finalmente vence, subjuga a presa e desfere o golpe final. Uma mistura de êxtase e cansaço se apodera do caçador, ele respira fundo, olha em volta e sente a necessidade demasiadamente humana de compartilhar esse momento, comunicar à outro, reconhecível da mesma espécie, as experiências vividas, comungar o feito. Saciada a fome é preciso voltar ao núcleo comunitário, à caverna, ao convívio seguro do grupo familiar, Com alguma dificuldade ele transporta, para casa, tudo o que não consumiu. A capacidade de ordenar a memória foi determinante para tudo o que ele fez, inclusive para imaginar e ir em direção ao futuro, uma espécie de passado reinventado, mas ele vive no presente e tão logo chega em casa um faminto grupo de “parceiros” avança na carne ainda fresca, o sol já se põe e uma fogueira é acessa na entrada da caverna, a carcaça do banquete é arrastada para o centro estabelecido pelo fogo, nosso caçador saciado observa a roda de humanos, de iguais e a caçada volta a sua lembrança, próximo a fogueira resta um esqueleto desmontado e uma manta de pele ensangüentada. O caçador se lembra e precisa narrar o ocorrido, no centro da roda com grunhidos e gritos entrecortados de pausas e movimentos que recriam a ação vivida, ele vai contando a historia, o que restou do bicho também parece cobrar vida e ele não vacila, agarra os ossos, veste a pele e urra imitando o animal que também luta com ferocidade, a luz trêmula da fogueira projeta na parede da caverna sombras fantasmagóricas que representam um passado recente, mas que pode ser também o futuro próximo, o tempo se instala como tempo ficcional, presente continuo expandido e contagiante, o público reconhece por traz da máscara o ator, ele também tem consciência do jogo da interpretação... A mentira como veículo da verdade. A ação se recria o publico quer fazer parte e acompanha aos gritos o ator, as sombras se multiplicam na parede, o êxtase se repete, compartilhado, coletivo, e então nosso ator sorri tranqüilo, o teatro esta consumado e o caminho para a religião também. A luz que foi feita também se apaga, mas o dia de amanhã nunca mais será o mesmo.
A PRÉ HISTÓRIA DO BONECO
Na história anterior se considerarmos que os objetos (pedra, ossos, pele, crânio.) usados pelo caçador/ator para contar sua história foram “animados” por ele e que as sombras projetadas na parede contribuíram com a narração teremos ai uma possível pré-história para o teatro de bonecos, uma entre tantas possíveis histórias sobre a origem do teatro e do teatro de bonecos, pois tudo indica que eles nasceram juntos como o ovo e a galinha.
Quando perguntei ao mestre mamulengueiro Sólon de Carpina (1920 – 1987) como e quando é que tinha começado essa historia de teatro de bonecos, ele sorriu e disse: Chico, o boneco é anterior ao homem. Como assim? Perguntei e ele explicou que antes de Deus fazer o homem, já havia feito os bonecos de vegetal, por exemplo, à boneca de milho... Depois é que esses vegetais se transformaram em gente como nós.
Segundo a bíblia; No princípio era a ação (e da ação fez-se o drama...) depois o primeiro ser humano foi feito de barro e animado com o sopro do espírito. Da divisão (costela) desse ser, surgiram o homem e a mulher.
“HISTORICAMENTE” FALANDO...
Assim como o conhecemos hoje, o teatro de bonecos nasceu na Índia ou na China, são diversas as lendas sobre sua origem nesses dois países. Os gregos antigos também já conheciam esse teatro que chamavam de “neuropasta” (neuron = nervos). Em Roma, eram apresentados em comemorações e banquetes e chamavam-se imagulae animate (imagens animadas), homunculi (homenzinho), ou, simplesmente, pupae (bonecos).
Bastante popular na Europa na época das grandes navegações, apesar de hora ser perseguido, hora ser usado pela igreja, o teatro de bonecos sobreviveu às perseguições políticas e religiosas e chegou até nós com vários nomes e formas distintas (engonços, bonifrates, presepes...) e embora não possamos precisar por onde nem como ele chegou no Brasil (é preciso que se faça estudo mais rigoroso e atualizado) o certo é que era apresentado em qualquer parte, desde os salões da realeza até as feiras e casas mais pobres, da casa grande à senzala, daquele tempo até hoje.
A ESTRUTURA DO MAMULENGO
O mamulengueiro é geralmente um homem com grande capacidade para inventar histórias e improvisar situações com os bonecos, brincando com o público e fazendo críticas aos costumes sociais, esse artista popular anda de povo em povo, despertando o espírito da alegria por onde passa.
Os bonecos são feitos, geralmente de madeira e tecido, de feições caricaturais e sempre lembram algum tipo social bem conhecido; um político, um religioso, um aventureiro, um patrão, um doutor, uma senhora, uma moça solteira, um trabalhador rural, alguns bichos naturais, e até criações do outro mundo como almas penadas e diabos.
O palco pode ser qualquer tecido onde o mamulengueiro se esconda atrás e os bonecos possam subir para brincar, mas também encontramos barracas de madeira com boca de cena e cortinas de correr como nos palcos italianos.
Antigamente, quando não existia a TV e outras formas de diversão, o mamulengo fazia muito sucesso em todo o Brasil, depois passou por uma grande crise, e quase desaparece sob as vistas grossas dos folcloristas conservadores que, em nome de um purismo nostálgico e mumificante combatem a renovação da cultura popular negando sempre o dinamismo próprio das tradições vivas.
Para sobreviver o mamulengo tem se renovado mantendo suas estruturas tradicionais, mas se atualizando, sobretudo na forma de se apresentar, buscando novos públicos e espaços, se tornado meio de vida de muita gente nova que vai descobrindo outras funções para os velhos e universais arquétipos da tradição mamulengueira.
Confirmando a hereditariedade a estrutura dramática do mamulengo é a mesma da Commedia Dell`arte. As histórias, contadas por personagens mais ou menos constantes, geralmente partem de antigos roteiros transmitidos oralmente de geração a geração, são clássicos populares que, adaptados livremente por cada mamulengueiro, vão se transformando para acompanhar a realidade sempre dinâmica da vida. De vez em quando um mamulengueiro inventa um texto totalmente novo, o que é muito bom para renovar a tradição. Outras características marcantes do mamulengo são o improviso e a comunicação direta com o público garantindo assim um mimetismo em permanente estado de ebulição e atualização histórica.

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