O cientista das marionetas
31.01.2012 - Tiago Bartolomeu Costa
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Henrique Delgado (1938-1971) descobriu que as marionetas tinham uma história. O seu legado, que é também a história dos bonecreiros portugueses, está agora em livro
Há histórias que ficam por contar. A de Henrique Delgado (1938-1971) é uma delas. Impulsionador do teatro de marionetas em Portugal, apagou-se por entre as centenas de horas passadas a recolher material em estradas onde não cabiam carros, a falar com os antigos bonecreiros, homens e mulheres que passavam para fantoches de luvas tradições orais, era o país ainda uma ditadura. Recolheu, investigou e divulgou, cá e lá fora, um teatro que fazia serões de camponeses em diferentes zonas do país, e que cruzava as tradições orais com a inventividade dos poucos meios.
Henrique Delgado morreu em 1971, homem novo, de 33 anos, com um tumor cerebral. Trabalhou até ao fim na construção de uma memória agora reunida num livro da autoria de Rute Ribeiro, co-directora artística do Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas, de Lisboa. Intitulado Henrique Delgado - contributos para a história da marioneta em Portugal(ed. Museu da Marioneta), reúne um conjunto notável de cartas, textos e artigos de jornais, bem como iconografia representativa do labor com que Delgado se dedicou a inventariar uma arte que, na altura, estava em vias de desaparecimento.
Conta a autora que a proeza de Delgado - que Rute Ribeiro compara à recolha de música popular portuguesa do etnomusicólogo Michel Giacometti - foi uma "corrida contra o tempo", acontecendo "numa época de transição". "Os antigos bonecreiros tradicionais estavam a desaparecer e, com eles, terminava também um estilo de vida, um repertório que passara oralmente de geração em geração e um conjunto histórico de centenas de marionetas" que ficaram guardadas graças ao esforço de Delgado, "na sua maior parte, às suas custas".
Segundo Rute Ribeiro, "a sua grande influência no desenvolvimento e estudo do teatro de marionetas é através dos seus inúmeros artigos na imprensa da época" tendo, depois de colaborações dispersas, começado a colaborar com a revista Plateia,onde assinou reportagens e entrevistas especiais sobre o teatro de marionetas. Henrique Delgado acreditava que "ao lado do teatro dispondo de actores de carne e osso, os títeres e marionetas podem, também, ter o seu lugar de honra", escreveu no primerio artigo que publicou, aos 26 anos, no jornal A Voz de Moçambique.
"Talvez a vida não seja uma coisa poética. Mas tento encontrar poesia na vida", escreveu em 1970, pouco antes de morrer, a Alexis Robert Philpott, importante investigador e dramaturgo inglês. Cartas como esta, onde mostrava o seu entusiasmo, fizeram com que Delgado se tornasse num divulgador das marionetas portuguesas, tendo publicado artigos em revistas estrangeiras. A bolsa que em Maio de 1970 recebeu da Fundação Calouste Gulbenkian para "o estudo do teatro de marionetas e respectiva actividade em Portugal" seria a oportunidade para desenvolver mais a fundo a relação que desde cedo manteve com figuras relevantes da cena internacional e que se haviam dedicado, como ele, a este género teatral.
Uma intuição
Rute Ribeiro chama-lhe "um investigador que via o seu trabalho como um verdadeiro cientista, para o qual vivia totalmente dedicado, de uma forma quase obsessiva". Delgado haveria de se justificar assim, num texto inédito: "É impossível conhecer a actividade de um titereiro se não conhecermos a actividade de muitos outros titereiros. O problema é encontrar esse "muitos outros"."
Começou tudo com uma intuição. Delgado decidiu ir procurar numa taberna da Rua do Capelão, em Lisboa, o bonecreiro António Dias, que havia participado nas filmagens deDom Roberto, o filme de José Ernesto de Sousa, com Raul Solnado e Glínicia Quartin. Tinha 24 anos. Descobre depois os pavilhões de feira, "o que lhe causa uma enorme surpresa, pois nem sequer imaginava que existiam marionetas de fios em Portugal". E foi quando encontrou, a partir das descrições de Giacometti, os Bonecos de Santo Aleixo, tradição popular alentejana de marionetas, que "nunca mais deixou de ver compensados todos os esforços, no sentido de descobrir outros agrupamentos".
Vem, de facto, das ciências essa "obstinação". Delgado tinha estudado no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (actual ISEG) e, depois do serviço militar, ingressou na Companhia das Águas de Lisboa. É aí que se descobre, em 1963, cenógrafo, aderecista, manipulador e dramaturgo, sob orientação de Henrique Trindade. E foi também assim que começou uma investigação sobre marionetas "com os objectivos de adquirir mais conhecimentos técnicos e, simultaneamente, enriquecer a biblioteca da Casa do Pessoal". Foram mais de cem volumes reunidos, alguns até em russo, que o animaram a prosseguir um estudo que se viria a tornar pioneiro na história do teatro em Portugal, depois da recolha que havia sido feita, décadas antes por Teófilo Braga.
"O que faltou a Henrique Delgado foi vida suficiente", diz Rute Ribeiro, mostrando calorosa e emocionadamente através da recolha de uma impressionante galeria de textos, entrevistas, crónicas e apontamentos reunidos em espólio no Museu da Marioneta. O mais importante dos documentos é um incompleto Dicionário de Títeres, do qual só existe uma lista de possíveis entradas, mas que constituiria certamente, assegura a autora, uma referência que ainda hoje não há. É essa perda que todos os jornais, nacionais e estrangeiros vão apontar quando Henrique Delgado morre.
Delgado deixou rascunhos, "pontos de partida", em papéis cheios de "frases incompletas", que não se puderam aproveitar, conta a mãe, Maria Eugénia. "Trabalhou neste livro até ao fim das suas forças, porque, embora terrivelmente doente e inválido, ditava sempre novos trabalhos, até perder a voz, por fim."
Do mesmo modo que Giacometti para as músicas tradicionais, andou por estradas sem alcatrão, à procura dos velhos tradicionalistas, apontando o que havia para apontar onde era possível apontar. Delgado fala de um país percorrido por bonecreiros que encontravam "serões cheios de camponeses a assistirem às suas representações, que chegariam a ter cinco ou mesmo oito horas". E de uma história que ajudou a fazer e que Manuel Rosado, um antigo bonecreiro, desses que percorriam a província, homem "com pouca instrução", mas cheio de "talento e vaidade" e uma coleção de bonifrates invejável, lhe agradeceu assim: "Foi uma quarta feira à tarde/ que o Sr. à porta me bateu/ perguntando pela minha pessoa/ pela primeira vez me conheceu// [...] pediu-me para amostrar/ os fantochos mal enfrapelados/ tinham vindo de uma torné/ dentro duma mala fechados// Desparou eu com les agarrados/ com uma posição de qualquer/ maneira, com uma deferença tão/ grande quando trabalha numa feira// [...] Quando o Sr. vir os Marionetes/ fica bem admirado, com/ os olhos abertos// são fantoches/ são robertos/ para o povo apreciar/ que são as mãos do rosado/ que tem tado os arranjar".
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